terça-feira, 10 de junho de 2008

A menina dos olhos de lupa

Leia A menina e o analista (de sistemas?)
e A menina e a sacada púrpura I e II e III

A menina e a sacada púrpura IV

O dia parecia não querer passar.
O tempo estava ansioso, assistindo, como um espectador fascinado,
a menina e o homem, ali conversando singelos e complacentes. Felizes.
O mundo paralisou e eles nem notaram..

- Especialidade? - disse, já empolgada, a menina.
- Não ter nenhuma.
A menina sorriu, algo lhe parecia muito familiar naquele rapaz.
- Você me parece tão conhecido,
mas não recordo de já ter cruzado com você alguma vez. - falou a menina, espiando dentro do rapaz.
- Talvez, sim. Qual a sua especialidade?
- Visual. E não é oftalmológica!
- É tipo, psico-ótica, ?
- Exatamente! - a menina sentiu-se tão bem, como há muito não sentia.
Alguém além de folhas de papel parecia entendê-la.
- Quem está analisando quem agora?- disse o rapaz, com um ar de ironia.
Um turbilhão de lembranças rondou a mente dos olhos de lupa.
Mas não podia ser! Não deveria! Não, não..
Logo, o rapaz olhou a menina, dentro de seus olhos, e disse:
- Sabe, eu menti. Eu tenho uma especialidade, mas ela me é alheia. Me formei, abri meu consultório: eu era analista. Até um dia, uma menina surgir em minha sala, como perdida. Uma perdida muito bem achada. Não sei se a menina havia ido lá pra saber de si, sei apenas que a partir daquele dia é que passei a saber de mim. Ela mudou tudo. Tudo em mim.
E, sabe, eu teria passado o resto da minha vida procurando ela, se não fosse tão fácil encontrá-la. Por que desde aquele dia, a única especialidade da minha vida, e a qual eu me dediquei e dedico totalmente, é poder sentir a menina que um dia tocou, tão certa e tão ríspida, o meu ser, e me deu razão de sê-lo.

Ali, na varanda, a terra parou de girar, as pessoas estagnaram,
o sol escondeu-se atrás de nuvens frias..
Não havia som, não havia luz, não havia tempo.
Não cabia na vida a imensidão daquele momento.
A menina estava estagnada. Abismada com a roda-viva da vida.
Tudo apresentava-se surreal demais.
O silêncio mais assustador da sua vida tornara-se real.
O olhos de lupa não conseguiam apalpar a existência..

O homem sorria. Um sorriso viril.
Um ar cruel (é, aquele mesmo de quem sabe o que quer!).
Quebrando a ordem universal, o homem cantou:
"Vai ver o acaso entregou alguém pra lhe dizer o que qualquer dirá.."

Uma lágrima fugitiva e sorrateira, correu a face da menina..
E o homem ali, parado, sorrindo para ela..






"Parece que o amor chegou aí, eu não estava lá, mas eu vi.."

domingo, 8 de junho de 2008

A menina dos olhos de lupa

A menina e a Sacada Púrpura III

O homem da sacada púrpura observou a menina dos pés à cabeça, olhou novamente em seus olhos e disse:
- Você fica bem melhor de seda branca e azul.
Quebrou-se o gelo.
A menina sorriu, singela.

- Posso entrar?
- Claro..

Subiram. O menino-homem espiou todo o espaço, sentiu os cheiros...
Enquanto a menina tentava disfarçar a bagunça.
Após analisar o local, ele sorriu e exclamou:
- Pensei que não existisse alguém vivendo pior que eu!
Ela sorriu, extremamente - e duplamente - envergonhada.
Pensava consigo na besteira que acabara de fazer:
"Estúpida, primeiro você abre as portas tão fácil, segundo exibe essa grande imundice!
Grande tola!"


Foram para a varanda.
- Desde quando você mora aqui? - disse ele.
- Desde sempre.
- Eu estou aqui há três anos.. - falou o rapaz, apreciando a vista da rua.
- É, eu sei. - disse a menina
Silêncio.
O homem espiava o mundo ao redor.
O olhos de lupa sentiam medo, medo apenas.

- Você vive sozinha desde sempre também? - disse o homem, olhando para sua casa, do outro lado da rua.
- Talvez. - respondeu fria; temente.
Mais silêncio, mais apreciação e mais medo.

- Você não vai perguntar meu nome? Minha idade? Não vai me dizer coisas bonitas e depois tentar me levar pra cama? - disse a menina frenética; a respiração ofegante; os olhos pareciam querer tomar vida, abertos, ávidos; o corpo tremia, tremia, tremia.
- Não. - respondeu convicto, com os olhos dentro dos olhos de lupa.
A menina se desarmou, e disse complacente:
- Tá.
- Pra mim, você parece uma menina onde uma mulher se perdeu. parece ter uns mil anos - pesados anos - dentro destes olhos profundos, que te suportam e são o que de melhor tens. Também não sou rapaz de dizer coisas bonitas, nem tentarei te levar pra cama, até por que você não tem uma. - disse o rapaz. Inerte e certo de cada letra que dissera.
A menina sorria, num quase desespero.
Jamais alguém havia lhe analisado, tão de perto, tão certo e inabalável.


- Pais? - disse ele.
- Orfã.
- De pai e mãe? - disse, olhando para a menina com certa piedade.
- Sim. - respondeu calmamente, a menina.
- Sinto muito... - falou envergonhao.
- Eu também.
O homem silenciou. Incomodou-se com sua pergunta indiscreta, e não se atrevia a dizer uma palavra sequer.

- Filhos? - perguntou a menina.
- Não. - disse o rapaz, surpreso com a atitude dela.
- Amantes? - perguntou o homem.
- Tive dois.
- Eu tive oito.
- Você ama demais, meu caro.
- É a minha demasiada humanidade.
- Por quê púrpura? - questionou a menina.
- Por que me dá uma condição de realeza, não acha? - disse sorrindo, o nobre rapaz.
- Acho, acho sim. - sorriu também, cúmplice, a menina.

Horas passaram. E os dois sorriam, companheiros desconhecidos, numa varanda pequena e comum...


quarta-feira, 4 de junho de 2008

A menina dos olhos de lupa


A menina e a Sacada Púrpura II
Leia A menina e a Sacada Púrpura

"Com o cessar da chuva, restaram os olhares perdidos

na imensidão existencial.
Tempo algum apagaria o primeiro olhar sem dor,
tempo algum apagaria aquele instante:
Quatro olhos complacentes dividindo o mesmo gozo.."

A menina sentou na janela amarela.
Do outro lado da rua o homem permanece escorado no gradeado de sua sacada púrpura,
firme, olhando dentro dos olhos de lupa.
O corpo da menina estremece.
Era a primeira vez que alguém a olhava tão intensamente (e de forma tão encantadora).
O homem sorri, dá as costas, fecha a porta, e o mundo se enche de solidão e claridade.
O sol desponta atrás das nuvens retomando o seu império.
A menina desce da janela. Exita. Olha para trás, para se certificar da partida. Recolhe os papéis e livros, o cigarro morto, colocando-o no cinzeiro, e em seguida os dois sobre os livros, na outra mão a caneca..

No quarto restam a janela amarela e a poltrona velha..
Percorre o corredor e desce a escadaria, com ar de quem encara a morbidez da vida:
É hora de comer seu dia feijão-com-arroz.
Repetir a mesma solidão e unir a novos pensamentos, para acabar no colchão velho e bolorento da sala, fumando cigarro e tomando vinho barato.

Passa pela cozinha e abandona a caneca, logo depois os papéis, livros e o cinzeiro, na mesa..
Sobre a mesa, uma fotografia antiga que a menina sempre evitava.

Troca de roupa. De moletom cinza e meias brancas, vagueia pela casa até parar em sua estação:
sentada frente à pilha de folhas sobre a mesa, com o lápis passeando nas mãos, e o olhar na imensidão de sua parede amarelada pelo tempo..
A campainha toca.
Um frio delicioso e assustador corre a coluna da menina.
Ninguém, nunca, tocara a campainha - exceto os carteiros importunos.
Ela respira a tensão por alguns instantes, levanta e vai ao encontro da porta:
corre as escadas, pára diante da porta, segura a maçaneta por alguns segundos, até que finalmente abre.
Parado à sua frente, com um sorriso estonteante e os olhos brilhantes, o homem da sacada púrpura - que ali, tão de perto, parecia tão menino.
A menina congelou. A boca entre aberta, os olhos desacreditados, as pernas tremiam, bambas, causando uma instabilidade constrangedora..