quarta-feira, 26 de março de 2008

A menina dos olhos de lupa

A menina e a sacada púrpura

É segunda-feira. Dia mais chato não há.
O céu carrega o peso das
nuvens cinzas e cheias.
Na velha casa, no quarto escuro, diante da janela amarela, repousa numa poltrona velha um semblante feminino de solidão. Ao chão, uma caneca de café frio, pontas de cigarro no cinzeiro, livros, folhas e lápis.
Um cigarro queima entre os dedos, enquanto os pés cruzam-se, repousando na janela.
A menina está longe, o olhar perdido na
infinda imensidão celeste.
Nem mesmo o barulho da rua; nem o telefone incessante; nem as primeiras gotas de chuva; nem o vento frio assanhando-lhe os pêlos, nada movimenta seu olhar.
O céu escurece a cada instante, apagando o sol brilhante do meio dia.
As gotas de chuva vêm numerosas..
A menina levanta da poltrona, encharcada das gotas que lhe banhavam invadindo a casa pela janela.
De pé, com as mãos apoiadas sobre a base da grande janela, mirando o céu com seu olhar 'luparino', gritou com uma autoridade divina:
- Achei que não virias!
O mundo fez-se de um silêncio perturbador. Enquanto a chuva seguia incessante, forte, pungente..
A menina, exposta na janela, sentia a chuva tocar a sua fronte e correr seu corpo..
- Vem, vem! Eu sei que você tem saudade, sei que você tem vontade de mim! - Berrou em
delírios lancinantes.
O vestido de
seda branca e azul gruda em seu corpo, em cada canto mal formado de sua matéria.
A menina pôs-se de pé sobre a janela, sustentando as mãos atrás, nas bordas.
Pondo o rosto e metade do busto e abdomen pra fora, beija o vento que lhe balança o vestido.
A existência se encheu de uma magia harmônica e miticamente surpreendente.
Os olhos de lupa carregavam um sorriso aberto, grande, infindável..
Canta, numa oração divina, como Iemanjá em meio às águas torrentes:
- "E a chuva nunca pára de cantar, a chuva nunca pára de descer.
E a chuva vem pequena e grandiosa, acalenta ou revira o nosso lar."
Do outro lado da rua, duma sacada púrpura, surge uma voz masculina, de um recanto imperceptível..
- "A chuva com o seu sonho de água, vem acesa pra lavar o que passou.." - cantou ardente a voz.
A menina respirou a voz como uma resposta dos céus, e prosseguiu seu transe inundante.
O vento, a chuva e os sons faziam música incomum.
Os olhos da menina, despertando, cruzam-se com um olhar plangente do outro lado da rua. E o momento fixa, com sorrisos correspondidos e almas compartilhadas. O mundo é puro encanto.
Enquanto dentro do quarto as gotas de chuva apagam o cigarro ao chão, morrendo na solidão...