quarta-feira, 4 de junho de 2008

A menina dos olhos de lupa


A menina e a Sacada Púrpura II
Leia A menina e a Sacada Púrpura

"Com o cessar da chuva, restaram os olhares perdidos

na imensidão existencial.
Tempo algum apagaria o primeiro olhar sem dor,
tempo algum apagaria aquele instante:
Quatro olhos complacentes dividindo o mesmo gozo.."

A menina sentou na janela amarela.
Do outro lado da rua o homem permanece escorado no gradeado de sua sacada púrpura,
firme, olhando dentro dos olhos de lupa.
O corpo da menina estremece.
Era a primeira vez que alguém a olhava tão intensamente (e de forma tão encantadora).
O homem sorri, dá as costas, fecha a porta, e o mundo se enche de solidão e claridade.
O sol desponta atrás das nuvens retomando o seu império.
A menina desce da janela. Exita. Olha para trás, para se certificar da partida. Recolhe os papéis e livros, o cigarro morto, colocando-o no cinzeiro, e em seguida os dois sobre os livros, na outra mão a caneca..

No quarto restam a janela amarela e a poltrona velha..
Percorre o corredor e desce a escadaria, com ar de quem encara a morbidez da vida:
É hora de comer seu dia feijão-com-arroz.
Repetir a mesma solidão e unir a novos pensamentos, para acabar no colchão velho e bolorento da sala, fumando cigarro e tomando vinho barato.

Passa pela cozinha e abandona a caneca, logo depois os papéis, livros e o cinzeiro, na mesa..
Sobre a mesa, uma fotografia antiga que a menina sempre evitava.

Troca de roupa. De moletom cinza e meias brancas, vagueia pela casa até parar em sua estação:
sentada frente à pilha de folhas sobre a mesa, com o lápis passeando nas mãos, e o olhar na imensidão de sua parede amarelada pelo tempo..
A campainha toca.
Um frio delicioso e assustador corre a coluna da menina.
Ninguém, nunca, tocara a campainha - exceto os carteiros importunos.
Ela respira a tensão por alguns instantes, levanta e vai ao encontro da porta:
corre as escadas, pára diante da porta, segura a maçaneta por alguns segundos, até que finalmente abre.
Parado à sua frente, com um sorriso estonteante e os olhos brilhantes, o homem da sacada púrpura - que ali, tão de perto, parecia tão menino.
A menina congelou. A boca entre aberta, os olhos desacreditados, as pernas tremiam, bambas, causando uma instabilidade constrangedora..

5 comentários:

Anônimo disse...

Eu já tive essa sensação.
É tão boa, mas nem consigo me aguentar com as pernas que tanto tremem, e corro para o abraço.
:)

Isso é fato.

Besos, mi cariño. ;*

Glaycianny Pires disse...

Acho que esse foi um dos melhores que já li.
Está tão real quanto uma descrição de Lispector, e tão doce como as histórias dos Clowns de Shakespeare.

Diria supimpa!

:)

Minhameninapoetadosolhosqueveemmaisqueomundointeirotaoamadaquantoalua.

Só AMO.

:*

Giuseppe Menezes disse...

Mais uma vez, Clarissa, adorei.

Karlinha disse...

E então, o que aconteceu?
Esse texto vai ter um final, né?
Você escreve tão bem *.* Prende a gente.
Me lembra um pouco de Clarice. ;)


Minha Clarissa.


[Versão contemporânea, talvez?]

Mires disse...

Mammy, amei!
Me sinto um pouco essa menina...
Lembrei as vezes que sinto essa friozinho na espinha...

Ela só não era 100% feliz...
Havia uma falha...
Ela não tinha uma Mammy Clare pra fazer a vida dela ficar colorida!

;D
te amo!